domingo, 16 de fevereiro de 2014

Uma reflexão acerca do termo "Cognição Musical"




Algumas imagens usadas no blog são sombras de cabeças com notas musicais dentro do cérebro. A música está ali? Não necessariamente. Essa é uma das visões acerca do processos de conhecimento. Há uma perspectiva chamada de Enacção ou cognição incorporada e situada, que traz uma proposta diferente das perspectivas tradicionais dualista (está dentro ou fora? No corpo ou na mente? E a mente está no corpo?). É necessário distinguir entre conhecimento  experiencial (fenomênico) e conhecimento sobre música (reflexivo, a posteriori). Segundo Maturana (1995 citado por OLIVEIRA et al, 2006), é impossível separar entre nível do observador e nível da experiência, já que tudo que for concluído acerca do fenômeno passa exclusivamente pela linguagem do observador. Ou seja, tudo se inicia no conhecimento experiencial em, seguida, o conhecimento sobre a música, que em seguida volta para o conhecimento experiencial. Resumindo: passa pela linguagem! A partitura, as notas não representam a Música. Estes são fenômenos descritos e transcritos por homens numa determinada cultura e tempo. Não se entende o conhecimento, inclusive musical, como aquilo que se passa dentro do corpo, mas nas possíveis interações entre organismo e ambiente. Para Varela et al (1991,citado por OLIVEIRA et al,2006), a cognição é definida como atuação: uma história de acoplamento estrutural que produz um mundo, e que funciona por  meio de uma rede consistindo de níveis múltiplos de sub-redes sensório-motoras  interconectadas, desta forma, a cognição musical pode ser descrita como uma história de  condutas motoras orientadas pela audição, sabendo que começa pela experiência musical e a reflexão consequente a esta experiência. 




OLIVEIRA, A. L. G. ; MERTZIG, Patrícia ; SCHULZ, Sabrina . Cognição musical como enacção e algumas possibilidades de implicações metodológicas em educação musical. In: V Reunião da Sociedade Argentina para as Ciências Cognitivas da Música, 2006, Corrientes. Actas de la V Reunión de la Sociedad Argentina para las Ciencias Cognitivas de la Musica. Corrientes: Instituto Superior de Música "Carmelo de Biasi" de Corrientes. v. 1.



Processos na prática

Aqui é um espaço para mostrar na prática como Processos Cognitivos acontecem no âmbito da música.


  • Inteligência - Aqui trago uma um exemplo de uma dualidade que acontece em muitos processos psicológicos, inclusive na inteligência, acerca da gênese ser social ou inata. Trago um exemplo perto de nós, recifenses, a pianista Crystal, com toda sua infância humilde, mas que pela atitude de seu pai de estar incentivando o fazer musical, ela, uma menina-moça tem um desempenho pianístico que muitos alunos de bacharelado em piano ainda não tem em curto espaço de tempo. Aqui entendo inteligência como um processo amplo, para além do desempenho escolar (Crystal também desenha lindos croquis e tem um bom desempenho escolar também).



  • Memória - numa definição simples, é a capacidade de captar, armazenar e evocar informações. é um processo extremamente importante pois está intrínseco a aprendizagem ( não existe aprendizagem sem memória). Para um qualquer pessoa, logo para o músico, a memorização desde construtos teóricos quantos práticos acerca da música. Um exemplo bastante prático que ARAÚJO (2000) traz é de coristas amadores. Eles não sabem ler partitura, logo a única forma de aprender as músicas é memorizando por trechos.


  • Resolução de Problemas - Dois exemplos bastante fáceis é o da composição e do improviso. Nos dois, a memória e aprendizagem é imprescindível. A diferença, segundo Sloboda (2005 citado por ARAÚJO, 2000) é que o compositor rejeita solução triviais, até porque ele tem mais tempo em relação a quem improvisa. Já quem improvisa, pelo pouco tempo que tem, aceita a primeira solução que aparece na mente.


  • Metacognição - numa forma simples, é a capacidade de pensar e observar seus próprios processos. Essa habilidade é de grande importância para para músicos de alto nível. Para que eles possam chegar num bom rendimento musical, é muito importante a capacidade de autorregulação e autodeterminação. Isso traz resultados potentes na performance. 



ARAÚJO, Rosane Cardoso de. Pesquisas em cognição e música no Brasil: algumas possibilidades discursivas. Música em contexto, Brasília, n. 4, 2010, p. 23-40.



Uma Música puramente Social


Nem preciso gastar tempo elencando os diversos usos e efeitos da música na vida do homem. Cada um experimenta de fomas diversas os benefícios dela. Muitos autores defendem o valor da educação musical como fator importante no desenvolvimento cognitivo e social, o social aqui assume um sentido de interação eu-outro. Quem toca em orquestra sabe o quanto é importante a figura do regente conduzindo o todo e também a interação entre os músicos, fator extremamente importante para o desempenho. Mas existem lugares em que a música não é apenas arte elitista com teor puramente estético (a música também é reflexo de diferenças sociais). Ela é usada para salvar crianças-homens da ignorância e miserabilidade. Pouco importa a sonoridade, a estética. O importante é a possibilidade de uma outra perspectiva de vida. A orquestra intitulada Orquestra de Lixo Reciclado é uma verdadeira preciosidade humana!




Há emoção na Música?

Algumas semanas atrás foi concluída a novela da Globo Amor à Vida. A última cena foi inspirada na última cena do filme "Morte em Veneza", de Luchino Visconti, de 1971, com o cenário e trilha sonora semelhantes. Mas o que interessa aqui é a trilha sonora (ou também). No mesmo dia em que foi veiculado o último capítulo, as redes socias estavam repletas de comentários, compartilhamentos sobre esta cena ( também a do beijo entre homens). Usuários relatando que ficaram extremamente emocionados, choraram muito com esta cena. A trilha sonora foi a 5ª Sinfonia, 4º movimento da peça, andamento Adagietto, de Gustav Mahler.


Essa música, por si só, imprime o colorido emocional? Ela induz a um estado emocional? Sobre a música e emoções, há duas perspectivas:

  1. A emoção ligada à música é atravessada pela linguagem, ou seja, carregada de aspectos culturais e históricos. A música evoca alguma emoção, mas não é fixa a emoção, por exemplo, uma música num andamento lento evoca tristeza e outra num andamento mais rápido evoca alegria, dependendo da tonalidade, seja maior ou menor. Essa perspectiva não acredita nesta possibilidade porque num mesmo sujeito uma mesma música pode evocar uma emoção agora, mas num outro momento não evoca a mesma emoção (como dizem no senso popular, música romântica só faz sentido quando se está na pior!).
  2. A segunda corrente acredita que a música seja capaz, sim, de evocar emoções simples, do dia-a-dia, como alegria, tristeza, medo, raiva, sendo independente da construção que o sujeito tem da música. A musicoterapia parte deste pressuposto. 
Há uma semelhança dessas perspectivas com as escolas linguísticas estruturalista e pós-estruturalista. No estruturalismo, acredita-se numa estrutura fixa da língua, não varia de sujeito para sujeito. No pós-estruturalismo as não existe uma estrutura fixa, mas esta varia de acordos com seus usos (pragmática). Uma perspectiva anula a outra? É um dualismo? Não é essa proposta. O que acontece é que o olhar do observador é que define como será visto o objeto, logo não há verdades definitivas sobre este objeto, mas sim  verdades transicionais e condicionais. Dizer que Saussure está certo e Wittgenstein errado, ou vice-versa, não chega a lugar nenhum. É apenas um lugar diferente que se olha o objeto, não obrigatoriamente um dualismo. O mesmo vale para o tema abordado, as emoções atravessadas pela música. Música é linguagem, logo é perpassada pela semântica, cada um pode dar um significado para ela de acordo com suas experiências.... Por falar em experiência, a música seguinte eu ouvia bastante quando fazia cooper no calçadão de Candeias. Ela me deixava muito disposto e rindo à toa. Fazia minhas caminhadas ouvindo Lenine e árias de ópera. Nossa! Uma maravilha! (Enquanto escrevo, deixo tocando um fundo musical com Chopin, Debussy e Mahler. Estes foram meus companheiros durantes várias postagens!) Para outras pessoas, estas músicas provocariam sono!

 




ROCHA, Viviane Cristina da; BOGGIO, Paulo Sérgio. A música por uma óptica neurocientífica. Per musi,  Belo Horizonte ,  n. 27, June  2013 .

Maurice Ravel e a Neurociência

Enquanto você lê esta postagem, coloque o seguinte vídeo para "tocar".



Este é o famoso "Bolero", de Maurice Ravel, peça composta em 1928 para execução orquestral. O Bolero é tocado diariamente na Praia do Jacaré em João Pessoa-PB durante o pôr-do-sol, pelo músico Jurandy do Sax.


      Qual a relação entre Ravel e a Neurociência? Vamos chegar lá, mas antes vamos ver o que é Imagens Mentais Musicais.
      Francis Galton (1822-1911) já falava em Imagens Mentais em 1880, mas apenas relacionadas à visão. Sabemos, na prática, que existem Imagens Mentais Musicais (IMM). É só perguntar a algumas pessoas como elas representam uma música na mente. Uns não conseguem lembrar de uma música com todos os seus aspectos, mas é muito comum um música ou até amadores afirmar poder executar uma música na mente tão fiel como se ela estivesse sendo reproduzida por um aparelho de som. Os compositores fazem exatamente o processo de transcrição daquilo que a mente produz ou ao ver uma partitura desconhecida consegue executá-la na mente pois conhece vários instrumento e como eles soam em várias regiões (grave, média e aguda). Mozart (1756-1791) transcreveu com precisão, ainda muito jovem, uma música que tinha ouvido apenas uma vez. Beethoven, já totalmente surdo, ainda escreveu uma obra que é considerada uma das grandes obras da Música Erudita Ocidental, a 9ª Sinfonia.

Eles conseguiu esse feito por ter exatamente essas imagens mentais. Mas há também situações patológicas em que essas músicas não saem da cabeça (earworms ou braiworns). As músicas ficam grudadas e não saem nem mesmo com muito esforço! Toca-se por horas ou dias uma música constante na cabeça. Sacks (2007) relata casos clínicos nesta situação. 
      Maurice Ravel (1875-1927) foi um pianista e compositor francês. Começou seus estudos cedo, aos 7 anos,  dedicando-se bastante ao piano. Como já foi dito, ele compôs o Bolero, mas sua obra consta de peças para outros instrumentos, inclusive, claro, o piano. Ele compôs um concerto para piano só para mão esquerda encomendado por Paul Wittgenstein, irmão de Ludwig Wittgenstein, pelo fato de Paul ter tido seu braço direito amputado. 
Maurice Ravel
Os últimos anos de Ravel foram afetados pela Doença de Pick, mal que se reflete em distúrbios de linguagem, personalidade e comportamento e é um tipo de demência fronto-temporal (para saber mais acerca das demência fronto-temporal consultar o artigo Demência Fronto-temporal). Cirurgia de cérebro em 1937 não foi bem sucedida e Ravel morre alguns meses depois. Ele começou a apresentar afasia semântica (incapacidade para lidar com representações e símbolos, conceitos abstratos ou  categorias), mas sua mente continuava com padrões musicais e melodias, ele só não sabia como traduzir no papel. A relação desta história com a Neurociência é a relação da Música com os lobos temporais.





SACKS, Oliver (2007). Alucinações Musicais, relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo; Companhia das Letras. 360p. 

Música e Neurociência


O avanço das Neurociências na pesquisa da relação entre Música e Cérebro tem sido proporcionado pelas técnicas de neuroimagens ( se quiser saber mais sobre exames de neuroimagem acesse o artigo Neuroimagem e Psicoterapia). Muito do que se sabe sobre as estruturas cerebrais e a música advém do contato com paciente que sofreram lesões (como o caso de Ravel). Abaixo está elencada algumas das descobertas nesta área:

  • Tanto na audição quanto na execução ambos os córtices auditivos e motores são recrutados. Mesmo só ouvindo uma música o córtex motor é acionado.
  • A percepção do som envolve uma série de estruturas cerebrais como córtex pré-frontal,pré-motor, parietal, somatossensorial, occipital, lobos temporais, cerebelo e sistema límbico, incluindo a amígdala e o tálamo.
  • A percepção de ritmo recruta estruturas como gânglios basais, cerebelo, córtex pré-motor dorsal e área motora suplementar.
  • Música e Linguagem são processadas de forma independente, havendo predominância do hemisfério direito no processamento musical e o esquerdo para a linguagem. Isso se comprova com pacientes com amusia.
  • Neuroplasticidade: Há diferenças estruturais entre cérebros de músico e não músicos. Entre as diferenças estão maior volume do córtex auditivo, maior concentração de massa cinzenta no córtex motor e maior corpo caloso anterior. Mesmo em músicos, a representatividade cerebral pode ser diferente, por exemplo, os dedos da mão esquerda de um violinista destro é maior do que os dedos de sua mão direita.
Existe um bom volume de descobertas, mas também há muito o que se descobrir. Dois livros que fez parte da minha bibliografia e que aborda este tema são:

  1. SACKS, Oliver (2007). Alucinações Musicais, relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo; Companhia das Letras. 360p.
  2. JOURDAIN, Robert(1998). Música, Cérebro e Êxtase: como a música captura nossa imaginação. Rio de Janeiro: Objetiva. 441p.


Há uma bibliografia vasta em português e em inglês também acerca deste tema ( vide o texto O que é Cognição Musical?).


Bibliografia


INFLUÊNCIAS DA MÚSICA NO COMPORTAMENTO HUMANO: EXPLICAÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E PSICOLOGIA. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, São Leopoldo: EST, v. 1, 2012. | p.944-956 . Autoria: Maryléa Elizabeth Ramos Vargas. Disponível em <http://anais.est.edu.br/index.php/congresso/article/viewFile/141/66> Acessado em 16/02/2014.

SACKS, Oliver (2007). Alucinações Musicais, relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo; Companhia das Letras. 360p.

JOURDAIN, Robert(1998). Música, Cérebro e Êxtase: como a música captura nossa imaginação. Rio de Janeiro: Objetiva. 441p.


Pederiva, Patrícia L. M. e Rosana M. Tristão. “Música e cognição.” Revista Ciências & Cognição 9 (2006):83-90

ROCHA, Viviane Cristina da; BOGGIO, Paulo Sérgio. A música por uma óptica neurocientífica. Per musi,  Belo Horizonte ,  n. 27, June  2013 .

Alucinações Musicais



Nestas postagens, o objetivo é trazer casos de alucinações musicais (AM) contidos no livro Alucinações Musicais, relatos sobre a música e o cérebro, de Oliver Sack. Os casos que ele traz no livro são de seus pacientes e pacientes de seus amigos neurologistas. Oliver Sacks nasceu em Londres, em 1933, neurologista e mora nos EUA, onde leciona no Albert Einstein College of Medicine (Nova York). É autor de Enxaqueca, Um antropólogo em Marte, Tempo de despertar (que inspirou o filme homônimo com Robert De Niro e Robin Williams), A ilha dos daltônicos, Vendo vozes, Tio Tungstênio, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e Com uma perna só — todos publicados pela Companhia das Letras. As possíveis causas de AM estão relacionadas à hipoacusia ( perda parcial ou total da audição), patologias psiquiátricas (demências, esquizofrenia, delírios, depressão, entre outros) e patologias neurológicas (acidentes vasculares, lesões cerebrais focais ou focos epiléticos principalmente nos lobos temporais).

Diferenciando Ilusão de Alucinação

Segundo o DALGALARRONDO (2000),


Ilusão é a percepção deformada de um objeto real e presente


Alucinação é a percepção clara e definida de um objeto sem a presença deste, ou seja, a sensação é resultado apenas de uma produção interna do sujeito. 

Você já imaginou ouvir uma música constante na sua cabeça? Ou ter surtos epiléticos ao ouvir determinado instrumento ou música? Não perca as próximas publicações!!


Referências

BENETTI, Idonézia Collodel . Resenha do livro Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. Revista de Neurociências (EPM. Impresso), v. 17, p. 301-303, 2009.

DALGALARRONDO, Paulo (2000). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre,Editora Artes Médicas do Sul 

MONTEIRO, Maurício. Reseña de "Alucinações Musicais. Relatos Sobre a Música e o Cérebro" de Sacks, Oliver. Revista de História, núm. 157, diciembre, 2007, pp. 213-219,Universidade de São Paulo,Brasil.

SACKS, Oliver (2007). Alucinações Musicais, relatos sobre a música e o cérebro. São Paulo; Companhia das Letras. 360p. 


Veja este caso:  Idosa com síndrome rara não consegue tirar músicas da cabeça